BEDIN V.I.P.
CRISTIANO BEDIN DA COSTA
Cristiano BEDIN da Costa
// VIDA CORRIDA/
Sub 3h: Cristiano Bedin da Costa, atleta solitário na Comunidade Autônoma de Cronópios, conta sua história em Buenos Aires
Querendo mostrar uma boa história sobre a Maratona de Buenos Aires, fomos procurar Cristiano Bedin da Costa, que reside em Porto Alegre. Ele é Psicólogo e Professor Adjunto no Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Também fundador e atleta solitário na Comunidade Autônoma de Cronópios.
Seu relato começa desta forma:IMG_6075
“F#$&!, vai dar”. O GPS acabava de marcar o vigésimo sétimo quilômetro, eu sabia que dali para frente seguir correndo era correr em direção a um inevitável e generalizado desconforto, que ainda nem havia completado dois terços da prova e que o ritmo, até então constante, iria cair. Sabia disso e sabia sobretudo da existência de meus demônios da subtração volumétrica, criaturas cuja presença em meus treinos tem sido uma constante no último ano. Quinze quilômetros pela frente e sabia que eles estavam à espreita, talvez esperando o momento certo para entrar no jogo. Dane-se, vai dar. Havia fechado a metade da prova abaixo do tempo planejado, e me aproximava do trigésimo quilômetro sem uma perda significativa de rendimento. Seria preciso um assombro muito grande. Seria preciso cair muito, uma senhora quebra, capaz de operar uma mudança e tanto no cenário. Não parecia ser o caso. “Vai dar”, indicou um sorriso mínimo, quase de nada. “F#$&!”, gritaram alto meus malvados de bolso. Eis o ponto: um terço (o mais feio, mas também o mais crocante) de maratona à frente, 4’05” de média e uma resolução: o corpo que cate os próprios cacos.
Não acredito que o desempenho de alguém em uma corrida deva servir como legitimador de um lugar de fala. Sendo mais claro, não acredito que o fato de você correr rápido ou grandes distâncias faça com que você tenha algo a dizer sobre corrida, ao menos não no que diz respeito à corrida de outros. No plano discursivo, a corrida só aceita solilóquios. Tudo porque correr é necessariamente correr só, e se há algo que se pode aprender correndo, é que a sua corrida é sua e demais ninguém. No limite, será sempre o seu corpo, com as ações e paixões de que ele é capaz. Compreender isso, e então compor os encontros, identificar o que aumenta ou diminui a própria potência, é tão importante quanto qualquer treino em qualquer planilha. Quando você corre e acredita nisso, a Ética de Spinoza pode ser uma leitura muito mais útil que Nascido para correr ou algo que o valha. Para mim, a corrida sempre esteve relacionada a um jogo mais amplo do qual ela é parte, nunca a totalidade. Sou professor universitário, e isso é a ficha 1. Por que corro? Tento fazer com que seja para isso e nunca apesar disso ou contra isso. Quando levadas à sério, uma aula ou uma pesquisa podem ser tão ou mais duras que 42,195 km, e é preciso estar preparado para elas. Além disso, há um mundo e uma vida aí fora, e me afastar dos amigos e das coisas que amo sempre me pareceu fracasso infinitamente maior que um mal desempenho em uma prova. Talvez também por isso, no que se refere à corrida, a competitividade não seja o meu forte. Tenho minhas metas, claro, que estabeleço de acordo com o que sinto ser capaz de alcançar sem colocar em risco as outras atividades. O sub3 em Buenos Aires era uma delas, e gosto de pensar que ela foi atingida de modo talvez imperceptível aos olhos dos outros mundos dos quais também faço parte. Um dia depois, à tarde, estava em uma sala repleta de estudantes de diferentes cursos de licenciatura. À noite, tocando Ramones com mais dois amigos em um estúdio com cheiro de mofo na Cidade-Baixa. Ninguém parece ter se importado, ou mesmo percebido, os gemidos insistentes das minhas panturrilhas.
Buenos Aires foi minha terceira maratona. Antes dela, havia corrido em Porto Alegre, em 2015 e 2016. A primeira de modo quase irresponsável, sem assessoria e buscando informações (sobre tênis, treinamentos, alimentação e estratégias) em sites da internet. Comecei a correr de modo mais sério (ou seja, dia após dia e efetivamente pensando sobre a corrida) em 2013, e durante um bom tempo o meu controle de volume e intensidade era feito pela diferença de horário entre a saída e a volta para casa, ou então pelo número de músicas escutadas durante a atividade. Quando se corre sempre em um mesmo trajeto, acaba-se adquirindo certa sabedoria (é quando a corrida se desdobra em uma espécie de exercício oftalmológico ou mesmo cartográfico: por ela, a cidade se mostra de outros modos). Nessa época, correr uma maratona era simplesmente medir até onde poderia ir correndo. Uma meta bem estabelecida, portanto: chegar até o limite, ou seja, até onde seria possível cumprir o percurso sem caminhar. Consegui completar a prova, com dores terríveis e em um tempo que ainda considero bastante razoável. Um ano depois, já com assessoramento do professor Claiton Lenz, com quem sigo até hoje, melhorei significativamente minha performance, completando a prova na casa das 3h05min. Na corrida, estabelecer metas e atingi-las é também aprimorar a si próprio, criar um outro nível subjetivo, construir e poder ocupar um outro patamar. Eis algo no que acredito, e no que deposito meu empenho diário.
Não sou um grande corredor. Minha técnica é quase inexistente, minha corrida é feia e sou praticamente analfabeto quanto aos saberes que circulam pelo meio (não sei pronunciar o nome dos grandes corredores, desconheço quantas e quais são as majors, não tenho certeza se minha pisada é neutra, pronada ou supinada). No entanto, em uma corrida, costumo desempenhar o meu papel de uma maneira, digamos, honesta, o que faz de mim uma peça interessante para compor duplas, quartetos ou afins. Solo, correr 10 km na casa dos 36’, ou uma Meia Maratona em 1h20min, faz com que o mais comum seja você estar longe das primeiras posições. No entanto, quando se está correndo em parceria com alguém mais rápido ou de performance similar, tais desempenhos podem não comprometer. Venci e tive bons resultados em algumas provas importantes nesse formato, tais como a TTT e a Maratona Internacional de Florianópolis. Em ambos os casos, considero que esteve em minha dupla o segredo do sucesso, e entendo como meta atingida ter conseguido desempenhar com honestidade o meu papel de sidekick, já que em todas as vezes o que havia estipulado para a minha prova foi alcançado. De todo modo, se fossemos considerar apenas os números em sua frieza objetiva, meus melhores tempos indicariam como consequência quase natural uma maratona em menos de três horas. Ao menos era isso que eu lia, escutava e tentava me convencer. Eu e meus demônios.
Minha vontade de correr foi gradativamente sofrendo alterações a partir do momento em que os dias foram pautados pelas planilhas e “sair para dar uma corrida” passou a ser “treinar”. Não diria que ela acabou, mas não tenho dúvidas que se modificou. Sei que ela existe, mas de outras e por vezes até mesmo para mim incompreensíveis formas. Hoje, sair para treinar é ir ao encontro da satisfação que vem com o depois (e ela sempre vem, não há outro modo), mas o antes e boa parte do durante não raro se constituem como um preço amargo a ser pago. Talvez isso seja algo comum e nada exclusivo, mas no meu caso, por alguma razão acabei vinculando e até mesmo responsabilizando a corrida por uma série de problemas que enfrentei no último ano. Sem entrar em detalhes, devo apenas frisar que eles não eram nada suaves. A consequência direta foi que os treinos longos, sabidamente importantes em qualquer preparação para uma maratona, acabaram se configurando como um verdadeiro martírio. Acabei decretando que não gostava de longas distâncias, e a estratégia que encontrei para seguir correndo com qualidade foi planejar a maior parte deste ano em função de provas de 21 km, o que fez com que minhas planilhas fossem pautadas mais por treinos de intensidade que por grandes volumes. Mesmo assim, o treinamento para Buenos Aires ainda foi marcado por subtrações bem significativas de quilometragem nos treinos de maior rodagem, o que acredito ter interferido em meu final de prova. Se alguém me perguntar que tipo de corredor eu sou, direi que sou “bom para um plebeu”. Esse estar um tanto à esquerda da realeza sempre me permitiu manter uma postura mais despojada com relação aos treinamentos, o que no caso dos treinos longos significa “roubar sem culpa”. 1 km a menos hoje, 3 na próxima semana, 500 metros na outra. Às vezes por preguiça, outras por cansaço, outras tantas só por birra: para mim, esses pequenos delitos sempre funcionaram como a demarcação de uma espécie de postura amadora, a distância que não me deixava esquecer que aquilo tudo, no fundo, era apenas uma diversão. “Sim, corro, mas veja bem, não é nada demais”. Hoje, no entanto, sei que não é disso que se trata. Quando sua planilha marca 34 km para uma manhã de sábado e você sai de casa sabendo que nem ao menos tentará correr mais que 24, alguma coisa não está bem. O que fiz? O que poderia ter feito: tratei com carinho os treinos da semana, ou seja, corri fielmente a corrida que gostava e ainda gosto de correr: fartleks, intervalados de 1km e 2km, treinos de ritmo de até 18 km… Cuidei da melhor maneira que pude de tudo isso, e encarei cada quilômetro rodado nos treinos longos como uma pequena vitória. Mesmo assim, cheguei a Buenos Aires bastante inseguro. Sabia que poderia correr bem até a metade da prova, pois tinha os treinos de ritmo e três boas provas de 21 km recentes que me indicavam isso. Mas e depois? Enquanto meus demônios riam e faziam barulho ao redor da mesa, estipulei uma estratégia absurdamente simples: correr os primeiros 10 km para 4’05”, os 10 km seguintes entre 4’05” e 4’10”, os próximos para no máximo 4’15”, e daí em diante com o que sobrasse. Para cada uma das transições um Energy Gel, e mais outro entre os quilômetros 36 e 40. Água em todos os postos, ao menos para molhar os lábios (havia corrido as últimas provas de 21km sem dar um gole sequer, o que agora me parece uma tremenda estupidez). Além disso, defini que se em algum momento antes do quilômetro 30 o plano fracasse, eu abandonaria a prova. Ora, eu havia ido até lá com uma meta, e completar custe o que custar uma maratona não é o tipo de fetiche que me mobiliza (não basta, simplesmente isso). Era a véspera da prova, e meu planejamento um tanto tosco acabou funcionando como um pacto secreto: o barulho e os risos sessaram, de certo modo a atmosfera mudou, chegou a noite e foi possível dormir de forma surpreendentemente tranquila.
Completei a prova com o tempo oficial de 2h56min10s (2h55min47s o líquido), uma média de 4’09”. Mantive o ritmo planejado para os primeiros 10 km até o quilômetro 34, quando as pernas finalmente cansaram. Mesmo assim, segui rodando em um ritmo mais forte que o inicial de dois anos atrás, na minha primeira maratona. Eis a graça: pensar no que se passa entre esses tempos, perguntar-se sobre tudo que foi construído (por você: no limite, apenas por você) nesse intervalo de 40 minutos que separa um resultado de outro, perceber o corpo arquitetar outros modos de existência. Correr é certamente um ato solitário, mas a corrida não é uma realidade isolada: gosto de perceber seus efeitos no modo como planejo uma aula ou um semestre de trabalho, no estilo de meu texto, em minhas incursões pela cidade, em meus relacionamentos ou em minhas experimentações culinárias. Para mim, avaliar um período de treinos é também estar atento a esses agenciamentos e contágios por vezes insignificantes. Agora é madrugada em Porto Alegre e chove muito lá fora. Abro um pouco a janela e observo os blocos de água baterem com força e escorregarem com velocidade pelo concreto da rua. Estou trabalhando em uma cerveja (a segunda), enquanto escuto Tom Petty and the Heartbreakers (para mim, tão confortáveis e seguros quanto um par de Adios Boost). It’s hard to find a friend, dizem. Sinto as pernas ainda doerem um pouco, mas talvez amanhã seja um bom dia para o recomeço. Há pontos a serem melhor abordados, ainda há margem para evoluir sem maiores estragos e sem colocar nada em risco. Além disso, há um novo desafio logo à frente. Um dos bons, sem dúvida. “Gosto das perspectivas”, indica um sorriso mínimo. Outra vez, fodeu.
Pesquisa:Internet
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